Pedro Alencar
6 min readNov 27, 2016

Quando eu era pequeno minha mãe passou por momentos difíceis ao tentar me levar para a escola. No jardim de infância eu já mostrava uma certa resistência em acordar cedo e passar seis horas em um lugar onde não queria estar.

Todos os dias pela manhã uma pessoa passando em frente à minha casa pensaria que uma criança estava sendo sequestrada, assassinada, esquartejada. Mero engano. Ela estava apenas botando o uniforme da escola.

Eu tornava a vida pelas manhãs impossível. Hoje, aos 21 anos, me pego pensando como seria ter uma criança às cinco da manhã gritando no meu ouvido, enquanto eu sequer me considero acordado, tomado pelo mau humor matinal, funcionando no piloto automático.

Essa é a parte que me desculpo publicamente à minha mãe.

Tanta dor de cabeça levou-a a me retirar da escola por um tempo. Ou não? Será que ela continuou insistindo nesse monstro matinal até ele se acostumar? Essa parte da história não me lembro, mas tenho uma vaga lembrança de ter saído temporariamente por ser “novinho demais” para esse tipo de coisa, como diria minha avó.

Depois de já ter passado pelo ensino médio, e agora estar cursando a faculdade, posso dizer com propriedade que aquele monstrinho não morreu. Ele viveu dentro de mim por todos esses anos, como um vulcão adormecido. De vez em quando ainda sinto umas lavas sendo expelidas, dando sinal de que a qualquer momento irá acordar.

Deus me livre do dia que ele acordar. Tanto tempo adormecido, suportando seis horas diárias por quinze anos seguidos? — Ah sim, esse monstrinho me fez reprovar de ano duas vezes — Menino, eu não conseguia! Simplesmente não conseguia matá-lo.

Mesmo cursando a faculdade, e sabendo de minhas responsabilidades como adulto, eu ainda luto contra ele. Minha mãe passou seu posto a mim. Todo dia tenho que combatê-lo para conseguir chegar em sala, prestar atenção para não vaguear pelos pensamentos e memórias mais inapropriados por uma hora e cinquenta minutos de aula.

Tenho uma lembrança vívida de quando estava no CA, hoje em dia o primeiro ano do fundamental. Era uma escola nova, numa cidade nova. O ano era entre 2000 e 2002. Tínhamos acabado de nos mudar, minha irmã foi matriculada primeiro, por estar mais a frente e mais madura para acordar pela manhã e ir às aulas sem rasgar a garganta.

Eu fui matriculado para estudar no turno da tarde. Já sabemos o porquê? Então vamos seguir com a história…

Lembro perfeitamente do clima pós-almoço, a barriga estufada, os raios de sol entrando entre as árvores formando sombras agradáveis e em formato das folhas no pátio da escola. Havia uma piscina pequena ao lado de um parque com areia. No parque havia escorregas, casinhas, algumas árvores espalhadas, gangorras e balanços. Sinto até uma nostalgia enquanto descrevo a cena.

Minha mãe estava comigo. Não lembro se era exatamente o primeiro dia de aula, mas acredito que havia um bom motivo para ela estar lá, entrar comigo e esperar o sinal tocar para se despedir de mim. Acho que nesse dia eu não estava no clima para encarar seis horas de aula e ela tentava me convencer de que eu teria bons momentos se me permitisse.

Na verdade, era exatamente esse o motivo. Ela estava atrasada pro trabalho, e eu não a deixava ir embora. Se fosse pra ficar sentado naquela sala, ela teria de ficar comigo. Decisão tomada, influenciada por aquela mania infantil de achar que o mundo gira ao nosso redor.

O sinal tocou. Teria sido engraçado se eu me lembrasse de uma troca de olhares que indicava que era isso. Tchau! Se divirta! Tô indo embora! Seguido de um esperneio. Eu teria agarrado em seu pescoço e me prendido feito carrapato para não ser deixado sozinho, vagueando por um lugar desconhecido, sem rumo, como um barquinho que não funciona à deriva. Mas não lembro, então deixo minha imaginação preencher esses vazios.

Só lembro de entrar na sala de mãos dadas com minha mãe e sentar na cadeira que posicionava-se bem em frente à duas portas. Uma que dava pro auditório, e outra que dava para o pátio.

As cadeiras eram pequenas, pois comportavam mini seres humanos. Esses mini seres humanos que eu cresci junto, e às vezes encontro por aí pela rua, redes sociais e vejo que se tornaram verdadeiros seres humanos. É até estranho pensar nisso.

Enfim, minha mãe se acomodou em uma cadeira ao meu lado, imagino que estava bem desconfortável, levando em consideração o tamanho da cadeirinha. Ela deveria ficar comigo ali até o final da aula. Acho que era isso que eu estava pensando.

Analisando a pessoa que eu conheço há 21 anos, meus devaneios, minhas inseguranças, acredito que naquele dia eu achava que se ela saísse do meu lado eu estaria perdido! Como voltaria para casa? O que eu faria? Como estudaria? Minha mãe é tudo o que tenho, o que farei sem ela ao meu lado? Não conheço ninguém, não posso ficar aqui sozinho!

Só sei que eu sentia um medo enorme só de pensar em não tê-la ali.

Mas ela não podia estar ali comigo, então tentou me explicar a situação. A aula já havia começado. Eu não a deixei partir, portanto ficou mais um pouco.

Por um momento me concentrei no que a professora falava. Me concentrei tanto que esqueci que havia uma mãe ao meu lado e uma insegurança que não a permitia ir embora. Acho que ela percebeu meu estado e aproveitou a ocasião para tentar sair de fininho. Conseguiu chegar até à porta sem que eu percebesse. Mas você pensa que uma criança de 5 anos é boba?

Ao olhar pro lado e não vê-la ali eu dei um pulo de susto. O medo tomou conta do meu corpo. De fato, eu ainda posso sentir o que senti naquele momento. Aquela sensação gelada percorrendo minhas veias, que começa no peito e me deixa desamparado.

Em um pulo, percebi que a porta que dava para o auditório estava aberta e saí correndo para procurá-la. Me sentia traído, como ela podia fazer isso comigo? A pessoa que eu mais confiava estava agora escondida atrás de uma estátua de Nossa Senhora Auxiliadora, tentando me fazer de bobo, tentando fugir de mim. Esse sentimento foi realmente tosco e ao mesmo tempo desolador. Me agarrei a ela como quem diz: “Por favor não me deixa aqui sozinho. Me leva contigo, me leva para um lugar seguro!”.

A essa altura, acredito que minha mãe já havia percebido que não tinha jeito. Ou continuava comigo naquela sala de aula e revivia seus tempos torturantes de escola, ou me levava para casa e podia fazer o que ela tinha que fazer. Sensatamente, escolheu a segunda opção.

Voltando para os dias atuais, eu ainda me pego, no meio da noite, no meio do dia, no meio dos estudos, querendo voltar correndo para o colo dela. Às vezes me sinto tão desolado e distante, alheio aos perigos do mundo, que queria o pó de pirlimpimpim da Emília para me transportar direto ao colo de minha mãe.

Hoje, morando a 200 km de distância desse colo protetor, vejo que ser adulto, coisa que tanto quis durante minha adolescência, nem é tudo aquilo que eu pensava, e um abraço quentinho no fim da noite, uma janta prontinha e a companhia de quem sabe o que faz, ou transparece saber, é tudo o que realmente conforta.

Mas a vida não é fácil mesmo, e quando me pego querendo desistir de tudo só para poder ter minha mãe próxima de novo, me lembro que pra alcançar o que eu quero é preciso abrir mão de muitas coisas, sair da zona de conforto, principalmente. Que é onde ela está, na minha zona de conforto. Onde volto sempre que me sinto totalmente exposto para a vida, quando sinto um pedaço de minha inocência sendo arrancado. Aquela inocência que me fez acreditar que minha mãe tinha total controle de seu tempo para poder passar seis horas de aula comigo, para eu não me sentir sozinho e em perigo.