Por que é preconceito linguístico usar o português certo?

Pedro Alencar
4 min readNov 30, 2020

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Não somos ensinados a olhar para a língua como nossa, como parte de quem somos. Pelo contrário, nos ensinam a enxergá-la como algo que devemos alcançar, com todas as suas regras dispostas em um livro que a escola se responsabiliza em passar. O título desse texto é, na verdade, uma pergunta que me deparei quando estava usando o twitter. Ela mostra o quanto estamos pensando na língua, e como as aulas de português influenciam no nosso entendimento sobre ela.

Pensar em língua é refletir sobre o seu uso, para o que ela serve e como ela desempenha o seu papel. Podemos, por exemplo, nos perguntar: quem nasceu primeiro, a fala ou a escrita? A partir desse questionamento, linguistas de todo o mundo se mobilizam para pensar sobre língua. Para Émile Benveniste, é impossível remontar a um período em que a fala surgiu na sociedade: “Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos nunca inventando-a” (Problemas de Linguística Geral I, cap 21, p. 285). A linguagem e o homem estão sempre unidos. Nunca existiu um sem o outro. Desde os tempos mais remotos nossos ancestrais encontraram uma maneira de se comunicar e, ocasionalmente, ou não, passamos a usar nossos órgãos vocais para a comunicação.

Não podemos dizer o mesmo da escrita. Ela surgiu em um momento que pode ser identificado. Uma pesquisa aprofundada nos permite encontrar sua primeira manifestação. Inicialmente, escrever tinha uma intenção mais prática, de auxiliar em procedimentos comerciais, por exemplo. Com o tempo, fomos nos apossando da prática para passar adiante os conhecimentos e, assim, ela foi se tornando importante para a sociedade.

Entra, então, a gramática. Perceba: a gramática só pôde existir porque, antes, começamos a escrever. As palavras que passamos para o papel servem para tentar reproduzir aquilo que criamos na fala. A gramática, ao nascer, pega esse amontoado de textos escritos, identifica padrões e cria todas aquelas regras que, nas escolas, nos assustam e nos fazem crer em pensamentos absurdos, como não saber falar a própria língua.

A gramática, portanto, está aí não para ditar o que é certo e o que é errado, mas para mostrar aos falantes daquela língua que ela descreve todos os mecanismos usados diariamente de forma inconsciente. Como resultado, dominamos o seu funcionamento e passamos a nos comunicar de forma mais coerente com os nossos objetivos.

Temos finalidades distintas para cada ato de expressão. O contexto, o ouvinte, o assunto, tudo influencia nas nossas escolhas para produzirmos a fala. Nas aulas de língua portuguesa, o aluno precisa aprender a identificar esses contextos e escolher a melhor linguagem possível para usar. Não adianta querer aprender um certo e um errado, porque a língua falada desconhece essa polarização.

Com seus fenômenos particulares, a língua pode ser considerada uma instituição. Em certos aspectos, funciona independente da vontade dos falantes. Tudo bem que você aprendeu que o certo não é “eu vi ela”, mas “a vi”. Entretanto, o uso no cotidiano se faz inconsciente. A língua encontra maneiras de se expressar que permitem uma certa “fluidez” na fala. Portanto, usar “eu vi ela” acaba sendo mais prático do que o “a vi”, e tudo bem. Isso não indica um erro, mas uma possibilidade de uso.

Dessa maneira, a língua evolui.

O pronome “você”, por exemplo. Ele tem origem na forma “Vossa Mercê” que, com o tempo, foi se tornando no pronome que conhecemos hoje. Como isso ocorreu? Através da fala. Pessoas escravizadas vindas da África não compartilhavam da mesma cultura daqueles que os traziam à força para essas terras. Portanto, não entendiam a diferença entre o “Vossa Mercê”, pronome de tratamento usado para se referir às autoridades, e o “tu”, pronome mais usual, que se referia aos cidadãos comuns.

O “vossemecê” acabou sendo usado para se referir à qualquer um. Para a elite, isso era errado, não passava de uma manifestação de pessoas sem estudo ou poder aquisitivo. Entretanto, com o tempo, os demais falantes foram aderindo essa forma nova até se tornar o “você” falado hoje.

Perceba: em um determinado momento, o uso do “você” já era tão comum que virou o “certo”. A gramática teve que se atualizar para adicionar a nova regra. Com isso, podemos dizer que não é a gramática que dita o que podemos falar ou não, mas o que falamos dita o que estará na gramática.

A norma culta da língua é usada para escrever textos e, em alguns casos, em situações formais. Se você for fazer uma redação para o vestibular, um concurso ou escrever para a internet, saber as regras da língua é essencial. Na língua falada já sabemos, inconscientemente, todas as regras gramaticais, todos as conjugações e concordâncias. Elas são produzidas por nós sem nos darmos conta. Um desvio da norma culta não indica o português errado, mas uma variação da língua.

Essa variação ocorre por diversos motivos: classes e grupos sociais, nível de escolaridade, localização geográfica, herança linguística. Tudo isso constrói a língua que o indivíduo produz. Por isso, zombar de uma forma considerada errada ou impor uma correção é muito mais uma atitude de opressão do que um serviço que fazemos pelo bem da língua. Através dela, expressamos quem somos. Ela marca nossa personalidade: quem somos, de onde viemos, quais lugares frequentamos.

Qual é, portanto, o português certo? A verdade é que todos nós falamos ele. Se está sendo falado e compreendido, é português. Mesmo o fenômeno “bicicreta” está previsto de ocorrer. Tudo tem um motivo de ser. Ninguém é melhor que ninguém por concordar com o plural.

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