Soca o sino pequenino

Pedro Alencar
7 min readDec 27, 2021

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Todo mês de dezembro é a mesma coisa. All I Want For Christmas is You da Mariah Carey volta aos topos das paradas musicais, lançamentos de filmes de natal passam a ser frequentes. O clima natalino se instaura no ar e eu, por alguns dias, me envolvo com ele como se eu fosse viver uma cena da Disney.

Depois de maratonar alguns filmes, a realidade bate à porta: no Brasil não neva. A magia começa a perder força quando lembro disso. O espírito natalino é totalmente estadunidense. Não tem como eu passar a noite de natal de pijama de veludo, a árvore não é natural do hemisfério sul, comer um peruzão assado no verão é como comer sopa na praia e a decoração não faz o mínimo sentido pro calor brasileiro.

Enfim, o natal não é para quem mora na américa latina.

Para quê é o natal, então? O natal é para juntar a família, ver aqueles parentes que não temos notícias, aquela tia que votou orgulhosamente no Bolsonaro na última eleição, aquele primo que foi para São Paulo trabalhar num programa de humor que difere muito pouco do Pânico na Tv, aquele tio evangélico que uma vez disse que a Anitta fez pacto com o diabo, ou que ser gay era coisa do diabo; aquela tia que sofre calada numa relação abusiva com o marido, enfim… O natal serve para que a gente finja que nada acontece e que se ama como família. Tudo em nome de Jesus, claro.

Esse ano não seria diferente. Todas as minhas forças se movem para que eu me prepare psicologicamente para a noite mais traumática do ano.

Um dia antes, enquanto trabalho, sinto uma fisgada no peito. O que é isso? Me pergunto. Tento não dar bola e continuo a trabalhar. Alguns minutos depois a fisgada volta, mas com uma sensação de frio na barriga, de medo.

Ah, tudo bem! Estou tendo uma crise de ansiedade. De onde ela vem? Estou cansado do trabalho, claro, mas não acredito que seja isso. Olho para o calendário: 23 de dezembro.

Putz! É amanhã, eu penso.

Tudo bem, não preciso entrar em pânico. É só por uma noite. A família está toda animada, eu não preciso ser o estraga-prazeres que vai ficar com a cara fechada a noite inteira. Será que eu bebo até apagar? Vou ter que participar das conversas? O que eu vou fazer quando falarem do Bolsonaro? Caraca, tá todo mundo muito feliz de passar o natal juntos. Será que eu tô exagerando? Minha família ficaria muito chateada comigo se eu fosse passar o natal com outras pessoas?

Nessa hora, coincidentemente, recebo uma mensagem no celular.

“Amigo, vai fazer o que amanhã? Vem passar o natal com a gente.”

Sorrio com a mensagem. Era uma amiga de longa data, que morava muito longe da família e que, portanto, não conseguia ver eles nessa época do ano. Ela sempre faz uma “ceia dos brothers”. Chama os amigos abandonados, sem família, o que brigou com os pais, o que foi expulso de casa, enfim, todo mundo sem destino.

“Vou passar com a minha família, amiga! Mas queria muito ir :(“, eu respondo.

Eu entendo o natal ter virado uma comemoração familiar, até porque a mídia impregnou muito isso na nossa cabeça, mas não entendo a gente não ter outra opção. Eu, por exemplo, se falo sobre a possibilidade de não passar o dia 24 de dezembro com eles, serei lembrado desse vacilo por todos os dias da minha vida.

Com esse pensamento, deixo o celular de lado e volto a trabalhar.

Eu passo o ano inteiro romantizando o natal na minha cabeça. Eu tenho essa fantasia de que a manhã do dia 24 é muito gostosa. Me imagino acordando com a família toda feliz em casa, preparando a ceia de forma harmoniosa, ouvindo uma playlist natalina. As crianças correndo pela casa, os adultos rindo, comemorando mais um ano juntos.

Infelizmente, nunca é assim.

A manhã do dia 24 é sempre caótica. O estresse para ter tudo pronto e perfeito é mais presente do que a vontade de comer rabanada, e olha que todos os anos há muita expectativa pela rabanada.

Dessa vez, porém, escolhi não me envolver. Ao acordar, não tinha ninguém em casa. Nada no ar indicava que era véspera de natal. Até mesmo a chuva que caía lá fora eu quase nunca vi acontecer nessa época do ano.

Enquanto o dia passava, eu arrumava coisas para matar o tempo. Ninguém me pediu ajuda, mas eu também não me ofereci para colaborar, então tinha muito tempo livre até a hora da ceia. Decidi ir à praia. Levei um livro junto, ouvi um pouco dos meus podcasts preferidos, escrevi em um caderninho. O dia foi de relaxamento.

Até chegar a noite.

Perto das 19 horas fui até a casa onde seria a ceia. Ainda não tinha visto ninguém, sequer sabia quem já tinha chegado. Confesso que em todo o caminho eu fui com o coração palpitando. Não lembro de ter me sentido tão ansioso assim para chegar em algum lugar (mesmo sempre chegando nos lugares com taquicardia nesse período pós-isolamento).

A casa estava bem decorada, havia uma variedade de comida que eu não via desde o natal passado. Passei o olho pela mesa pensando que ia passar muito mal de tanto comer. E, então, falei com a família. Entre abraços e dois beijinhos, ia tentando não manter muito o contato visual para não ficar preso em conversas desagradáveis.

Após falar com todo mundo, fiquei parado no canto da sala sem saber o que fazer, nem para onde olhar. Percebi que todos os outros também estavam meio sem saber o que fazer. Enquanto eu mordia os lábios como passatempo nesse momento constrangedor, a pergunta de um milhão de dólares veio em minha direção:

“E aí, como tá a faculdade? Falta muito pra se formar?”

Aquilo entra no meu ouvido como um verme com fome, louco para comer meu cérebro. Dou uma engolida na saliva para pensar numa resposta. Atualmente, estou odiando a faculdade, não aguento mais nenhum assunto acadêmico, reprovei em todas as disciplinas que eu peguei, estou completamente desmotivado e não aprendi nada nas vezes que tentei estudar.

“O quê? A faculdade?”

Passo a língua pelos lábios para dar tempo de pensar no que eu poderia dizer que não fosse expôr isso tudo mas que também pudesse acabar com aquele assunto logo.

“Ah, tá ótima! Tô gostando bastante”.

A tia parece feliz por mim, mas eu não tenho intimidade com ela. O que eu ia falar? A pandemia acabou com a minha saúde mental, tia! Meu poder de concentração esgotou, bebi mais do que devia, passei a fumar uma carteira de cigarro por dia, não aguento mais ser um estudante universitário, tenho vontade de xingar minhas professoras que cobram coisas ridículas…

Mas, a resposta que eu dei foi suficiente para o que eu queria. Ela respondeu com um “Ah, que legal”, e se virou para fazer outra coisa.

Bem, talvez eu tenha exagerado. Talvez eu não precisasse agir desse jeito. Ela fez uma pergunta genuinamente interessada, e eu nunca tive nenhum problema com essa tia específica. Me senti mal por ter falado assim. Eu posso estar sendo um pouco infantil, vou agir de forma mais madura na próxima vez que vierem falar comigo.

“E essas tatuagens aí, têm algum significado?”

Pelo amor de Deus! O tio crente, não!

“Nenhum…”

“O pessoal da igreja fica cabreiro com essas coisas de tatuagem. Eu já fui assim também, mas se você pega pra ler a bíblia mesmo não tem falando nada disso… Você só não pode fazer uma com culto à morte.”

Caramba, tantas respostas que eu poderia dar a esse comentário. Invés disso, faço o que eu tinha me comprometido a fazer. Agir de forma madura.

Respondo: “hum…”, pego meu celular e finjo mandar uma mensagem urgente. Esse tio é mais insistente, ele demora a entender a dica. Enquanto digito qualquer besteira num grupo do Whatssapp que só tem eu, vou balançando a cabeça fingindo estar acompanhando o que ele fala.

Finalmente, ele para e vai pegar uma rabanada.

Depois disso, me mantive na meta da noite: evitar qualquer tipo de contato. Foram horas nas redes sociais vendo o natal dos outros e me questionando se ninguém mais estava passando pelo o que eu passava. Em alguns momentos, eu levantava escondido para pegar alguma coisa para comer e voltava a me deitar no sofá da sala enquanto os outros conversavam na varanda.

À meia noite, quando todos se abraçaram se desejando feliz natal, fingi estar muito apertado e me tranquei no banheiro. Fiquei ali por cinco minutos até perceber que já tinha acabado a troca de afetos.

Eu, por acaso, ia abraçar um tio homofóbico? Uma tia que me olha de cima até embaixo com cara de nojo? Pessoas que eu não tenho o mínimo contato, mas que estão sempre de fofoca sobre a minha vida, e a vida de todos os presentes ali, na maior falsidade, se abraçando como se fossem uma família linda?

Mas é claro que não!

No final da noite, já exausto mentalmente e fisicamente, voltei pra minha cama. Ali, enquanto olhava pro teto até cair no sono, pensei: se Jesus Cristo voltasse pra Terra ele ia acabar com essa merda de natal.

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