Uma perspectiva incomum

Pedro Alencar
5 min readOct 28, 2020

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Photo by Eduard Militaru on Unsplash

Eu não aguento mais ficar aqui. Esse clima de loja de plantas faz mal para minha respiração. Olha só o vasinho mixuruca que me colocaram! Como as minhas raízes vão crescer? Eu preciso de espaço. Para mim, já deu. Hoje eu vou fazer de tudo para ser notada.

Eu sou a Ji, pelo menos assim é como eu gosto de ser chamada; apesar de ninguém se referir a mim desse jeito. Na verdade ninguém sequer fala comigo. Tem três meses que eu to pendurada no teto dessa floricultura e nunca me levam. Meu sonho é ser levada para a casa de alguém, sabe? Ficar perto de uma janela ensolarada, receber o ventinho da cidade nas minhas folhas.

Aqui não é lugar para planta, não. É muito deprimente. Todos os dias entram pessoas das mais variadas idades e saem de mãos cheias. Algumas de nós estamos aqui por muito tempo, ninguém tem interesse em nos levar para casa. Eu não sei o motivo, afinal, somos todas das mesmas cores, algumas são até do mesmo tamanho. O que faz elas levarem uma e não outra?

Enfim, não gosto de ser invejosa, mas eu murcho todas as vezes que vejo outras plantas serem levadas no meu lugar. Muitos até param, me olham, me pegam nas mãos, mas sempre me colocam de volta. Tô começando a me sentir rejeitada. E isso não é gostoso.

O Seu Evandro é quem cuida do lugar, e claro, de nós todas. Todos os dias ele passa de uma em uma para regar, dar uma vitamina ou até mesmo para dar um bom dia. Ele é muito simpático, mas eu não sinto que aqui é a minha casa. Meu problema não é com ele, é com o lugar.

Alguém entrou agora pela porta. Pela cara, vai querer levar uma samambaia… Elas têm saído muito hoje em dia, e é sempre o mesmo tipinho de gente quem leva elas. Saem daqui todas sorridentes, me dá uma raiva!

Eu sou uma jiboia. Eu fico até maior que uma samambaia, e me reproduzo muito fácil. É só cortar uma mudinha e botar na água. Duvido que a Dona Samba consiga fazer isso. Pelo o que eu vejo, ela todo dia dá trabalho pro Seu Evandro, que tem que ficar limpando a sujeira que elas fazem. Ficam soltando folha direto, não pode bater um ventinho que cai. Quem ia querer isso dentro de casa? Não entendo o hype.

Olha, entrou alguém! Vou tentar me balançar. Putz, que difícil; nem um vento para me ajudar. É uma senhorinha, ela anda muito encurvada, coitadinha! Duvido que vá conseguir me enxergar naquela posição.

Oii!

Senhora?

Tudo bem?

Quem dera que planta soubesse falar.

Ela, finalmente, olha para cima. O Seu Evandro está a ajudando a encontrar algo específico. Estão olhando para cá, para a minha direção. Meu deus, preciso fingir costume. Aja naturalmente.

Permaneço imóvel, mas eles passam direto por mim. Vão ver outra planta que está a algumas palmeiras para trás.

Não é possível! Eu to aqui cheia de vida, minhas folhas verdinhas, e ninguém quer me levar para casa?

Às vezes o Seu Evandro assiste uns filmes que passam à tarde na televisão. O movimento por aqui pode ser bem devagar, então ele liga a tv e tira um cochilo. Mas eu fico prestando atenção, porque o som alto chega até aqui. Me vejo como a mocinha de um deles, que sonha com o cara perfeito. Eu, no entanto, só queria uma dona para cuidar de mim.

Não sei se todos esses filmes que passam são os mesmos e eu já assisti várias vezes, ou se todos os dias passa um filme diferente com a mesma história. Assistí-los todas as tardes, porém, me influenciou. Eu só não sonho com um príncipe encantado, mas com alguém que me leve para casa. De vez em quando assisto uma cena de alguém regando o jardim, e acho tudo tão lindo. As plantas parecem estar muito felizes, bem acompanhadas. Aqui ninguém nem fala comigo.

A senhora e o Seu Evandro estão voltando. Parecem não ter encontrado o que queriam. Algo está prestes a acontecer, posso sentir minhas folhas se agitando. Um vento cortante passa pelo corredor da floricultura e faz o fio no qual estou pendurada balançar com força. O gancho que me prende escorrega e deslizo para o lado.

Ui, fiquei tonta.

Outra rajada de vento corta o corredor, mas dessa vez ele traz em minha direção um vaso que estava pendurado ao meu lado. Ele me acerta em cheio. O fio que me mantinha suspensa no ar se rompe, e com um frio que subiu por todo o meu caule senti o chão se aproximando numa rapidez que nem pude perceber o que estava acontecendo. Num estouro, meu vaso se quebra. A terra onde estou plantada se espalha por todos os lados e algumas das minhas folhas se soltam. É o meu fim. Cheguei ao ápice da minha decadência.

Começo a chorar. Poxa, acordei hoje tão esperançosa de que ia mudar de vida. Senti em minha clorofila que ia ser levada. O que eu não sabia, porém, é que quem ia me levar era o vento, direto ao chão.

A senhora veio em minha direção sentindo pena de mim. Pude ver em seu rosto a expressão de quem se lamenta muito por uma situação. Mas eu já não estava mais me importando com nada. Eu ia direto para o lixo agora. Já vi outras plantas terem o mesmo destino.

Os dois começam a juntar a terra que se espalhou e jogam de volta ao vaso, mas eu não me importo. Nada será capaz de me convencer do contrário: serei descartada. Já estou aqui há muito tempo, esse é só mais um pretexto para poderem se livrar de mim.

Seu Evandro começa a falar, mas eu não escuto nada. Ele parece estar chateado com a situação. A senhora me levanta do chão e me leva com ela até o balcão, onde eles costumam fazer a troca de um papel antes dos clientes levarem uma de nós para casa. Deve ser algo que indique o nosso valor. Eu só nunca entendi porque a vida de uma planta vale apenas um papel.

Algo, no entanto, está diferente. Ela não me deu nas mãos do Seu Evandro, apenas me apoiou na bancada, me mantendo ao seu lado. Ao dar o papel para ele, pegou a sacola com as coisas que havia escolhido, e puxou a alça do meu vaso. Olhei para cima meio confusa, mas no fundo entendendo o que estava acontecendo.

Fui levantada até a altura de seu rosto e ouvi:

— Tadinha da minha princesinha! Caiu lá de cima no chão, vamos pra casa que eu vou te dar muita vitamina até você ficar fortona, minha filha.

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